Inovação provoca mudanças profundas nos portos brasileiros

  • 13/03/2023
  • 21 minutos

Séculos antes de Cristóvão Colombo descobrir a América, Pedro Álvares Cabral chegar ao Brasil, ou Américo Vespúcio dar nome à Baía de Todos os Santos, a navegação marítima e a atividade portuária já moldavam a história. Além de alimentar o imaginário humano. Quando Hesíodo mencionou a lenda dos “Argonautas” em sua poesia três séculos antes de Cristo, a saga de homens corajosos que deslizaram por mais de 3 mil quilômetros de mar entre a Grécia e a Geórgia já era contada oralmente há aproximadamente mil anos.

Mesmo tendo sido imaginada como uma embarcação incomparável, com seus incríveis 50 remos e uma enorme vela, que lhe davam agilidade ímpar, a tripulação do Argo, liderada por Jasão, com heróis e lendas como Hércules e Orfeu, precisou de pouco mais de um ano para cumprir a missão de chegar ao Velocino de Ouro – nome pomposo para a pele de um cabrito mágico. Hoje, com as modernas técnicas de navegação, a saga teria durado, no máximo, um mês. Nas condições certas, 15 dias e sem os riscos de uma aventura mitológica.

Pois bem, mais de três mil anos após Argo, uma startup brasileira chamada Argonáutica em referência à saga de Jasão, trabalha para que os processos de atracação de embarcações em terminais portuários do país passem a acontecer com mais segurança agilidade. Tudo isso a partir de um sistema de mapeamento que vai permitir aos navios saberem em tempo real a profundidade dos canais de acesso aos portos, conhecida pelo nome técnico de calado dinâmico. Hoje essa profundidade é determinada muitos anos antes e, para evitar surpresas desagradáveis, as áreas de manobra precisam ter uma grande distância em relação ao fundo.

A iniciativa – que aqui na Bahia está sendo estudada pelos grupos Wilson Sons, que opera o Terminal de Contêineres do Porto de Salvador (Tecon Salvador), e a Acelen, no Temadre, em Madre de Deus – é apenas uma entre muitas possíveis inovações tecnológicas que estão no horizonte do setor portuário. A expectativa é que Salvador se torne o primeiro porto brasileiro a utilizar a ferramenta comercialmente. Além da Argonáutica, a Wilson Sons também apoia atualmente cerca de 20 startups, algumas com trabalhos bem desenvolvidos. Em outra frente, por exemplo, está em desenvolvimento um trabalho com caminhões autônomos portuários, ainda sem uma previsão para o início da operação.

Num processo de imersão no universo tecnológico, a concessionária do Tecon promoveu um mapeamento a nível mundial do universo das startups que estão desenvolvendo inovação paras as atividades marítima e portuária. Foram localizados 528 cases. Nos últimos três anos, a empresa dialogou com as empresas e apresentou os resultados destas interações na última Feira Intermodal, realizada em São Paulo, entre os dias 28 de fevereiro e 2 de março.

Em Salvador, a Wilson Sons trabalha junto com a Argonáutica, uma startup em que a empresa tem participação minoritária, para a implantação do conceito de calado dinâmico. A ideia é investir no trabalho junto com autoridades portuárias e marítimas, além dos profissionais da praticagem, para conseguir oferecer às embarcações informações mais precisas sobre a profundidade das áreas de manobra na Baía de Todos os Santos.

Um exemplo prático do impacto que o calado dinâmico pode trazer para as operações pode ser percebido nos testes realizados no Portocel, em Aracruz, no Espírito Santo. No local, as condições no fundo do mar costumam se alterar rapidamente. De acordo com Daniel Garcia, coordenador de excelência e inteligência do terminal portuário, os testes já permitiram a ampliação da margem de manobra em mais de um metro de profundidade. Utilizando apenas 75% do potencial que a ferramenta oferece, a empresa registrou o ganho de 415 horas de operação em comparação com o calado estático da região, de, no máximo, 13,8 metros – 11,8 m de profundidade mais a maré alta. Agora, o objetivo é testar a ferramenta com 100% de seu potencial e em operações noturnas.

E para quem pensa que a inovação só existe quando se projeta do zero algo completamente novo, o engenheiro naval Rafael Watai, diretor da Argonáutica, explica que tudo o que a empresa fez foi lançar mão de ferramentas que já eram usadas para a projeção dos canais de acesso aos portos e fazê-las funcionar em tempo real. Além disso, trata-se de um processo de medição que já é utilizado em alguns países, como a Austrália. Segundo ele, já foram realizadas operações de testes com 18 porta-contêineres no Tecon Salvador.

“Estamos falando de algo que vai trazer muito mais segurança e eficiência para as operações”, aponta Watai. No Porto de Santos, onde também estão sendo realizados testes, a ferramenta reduziu a quantidade de horas em que a atividade marítima ficava suspensa de 180 horas para 8 horas, utilizando-se apenas 10% do potencial do calado dinâmico, exemplifica. No Rio de Janeiro, outro local do país onde a tecnologia já foi homologada, ainda não se realizaram os testes necessários e os sensores ainda estão sendo instalados.

Guinada à inovação
No final de 2019, a quase bicentenária Wilson Sons procurou o Cubo Itaú, maior hub de inovação da América Latina, disposta a encarar um desafio: colocar-se à disposição para, junto com universidades e empreendedores, fomentar e implementar soluções inovadores na atividade marítima e portuária. A ideia era oferecer os ativos e a estrutura da empresa para destravar investimentos e fazer quem trabalha com tecnologia começar a enxergar as operações marítimas e portuárias como opções de trabalho.

A partir daí, foram identificadas quatro tendências de desenvolvimento: muitas soluções voltadas para a descarbonização, tanto nas embarcações quanto nos terminais; compartilhamento de dados, que vêm estimulando movimentos de trocas de informação tanto entre as startups, quanto das grandes corporações; proliferação de startups, com um número que vem se ampliando cada vez mais rápido; além de uma tendência de operações cada vez mais autônomas e remotas.

A atividade é milenar e dificilmente associada à inovação tecnológica, entretanto esta realidade deve mudar. Para o diretor de Transformação Digital da Wilson Sons, Eduardo Valença, o trabalho desenvolvido por empresas como a Wilson Sons deve modificar essa percepção nos próximos anos. “Nós participamos de um mercado global, então se conseguirmos fazer com que um navio que vem da China para cá tenha nos nossos portos a mesma qualidade de serviço que tem lá, seremos muito mais competitivos”, avalia.

“É um setor muito tradicional e até pouco atrativo para as novas gerações, que prefere muitas vezes trabalhar com a tecnologia aplicada em outras áreas, como saúde, educação e fintechs”, exemplifica. “O nosso desafio é desmistificar este setor e mostrar quão grande é o mar de oportunidades que nós temos no desenvolvimento de tecnologia aplicada à indústria marítima e portuária”, aponta. Valença diz que ainda hoje existem processos em uso que remetem a décadas atrás.

Hoje as atividades navais e portuárias estão longe de figurar entre as primeiras opções profissionais dos mais jovens, diz Valença. Aos 36 anos, ele começou com 20 anos na Wilson Sons e é uma exceção à regra. Laços familiares – o pai trabalhou no setor – são a explicação para o jovem ter seguido este caminho. “É uma paixão de berço e eu tenho a convicção de que nada me tira deste setor. O que une e mantém essas atividades vivas é justamente a paixão. São profissionais que estão há muitos anos trabalhando com isso”, destaca.

Em muitos casos, os desafios dizem respeito a questões de natureza regulatória, ou que não podem ser sanadas por uma empresa apenas de maneira individual. No Cubo Itaú, a empresa trabalha em parceria com o Porto do Açu e a Hidrovias do Brasil. “Somos três grandes empresas, trabalhando em conjunto, pensando em como podemos destravar o potencial que a nossa indústria possui”, diz. Neste sentido, as frentes de trabalho passam tanto pela busca por novas tecnologias, atração de novos profissionais e também com a assimilação de boas práticas que já existem”, explica Eduardo Valença.

“O grande desafio que nós enfrentamos, e que qualquer empresa precisa enfrentar, é o de promover operações mais seguras, sustentáveis e éticas. Essa é uma tendência muito forte no universo das startups”, destaca.

Revolução silenciosa 
Desde as primeiras privatizações de terminais portuários, ainda na década de 90, o país começou a investir na modernização da atividade milenar. O diretor-executivo do Tecon Salvador, Demir Lourenço, conta que nos últimos 20 anos a atividade portuária passou por uma intensa transformação tecnológica. “Quem passa pelas avenidas que margeiam os portos, não apenas o de Salvador, não faz ideia da revolução tecnológica que já aconteceu nas últimas décadas”, aponta. E isso não se restringe apenas à utilização de novos equipamentos, acredita.  

A estrutura do Tecon Salvador tem exemplos de inovação e pioneirismo no setor. Enquanto grandes empresas do setor ainda patinam na eletrificação de equipamentos, com exemplos de grandes players que só agora começam a usar máquinas híbridas, há 12 anos o terminal de contêineres baiano opera com a maioria dos equipamentos para movimentação de cargas elétricos e com sistemas para regeneração de energia, deixando de emitir na atmosfera toneladas de monóxido de carbono.  

“Trouxemos muitos equipamentos, mas investimos muito no desenvolvimento de pessoas. O resultado disso é que os portos brasileiros, principalmente na área de contêineres não devem nada a quaisquer terminais no mundo. Os sistemas que utilizamos, o treinamento que fornecemos é o mesmo que se tem acesso em portos líderes mundiais, como Los Angeles e Roterdam. Muda apenas a escala de operações”, diz.  

No que diz respeito à quase bicentenária Wilson Sons, a grande preocupação é de se manter atualizada, explica Lourenço. Segundo ele, foi este pensamento que levou a empresa a buscar o Cubo Itaú, maior hub de tecnologia da América Latina, e apostar nas startups.  

A expectativa do Tecon é a de trazer para Salvador o primeiro case de utilização em escala comercial no Brasil do calado dinâmico. “Esses levantamentos de profundidade são realizados periodicamente, mas num intervalo de cinco ou dez anos. Com o acompanhamento constante, teremos em tempo real a condição do canal de acesso”, explica Demir Lourenço. “Estamos muito acelerados e eu tenho muita expectativa de que seremos os primeiros do Brasil a implantar ainda este ano”.  

“Apesar de todo o tempo e a história que nós temos, queremos mostrar ao mundo que nos mantemos em constante evolução”, destaca o executivo.  

Demir Lourenço acrescenta ainda que os players da atividade marítima estão cada vez mais voltados para questões relacionadas à sustentabilidade e equidade. “Nós entendemos que precisamos ter muito cuidados com todos os nossos stakeholders (todas as pessoas e grupos que podem ser afetados pelas ações de uma empresa), além dos nossos objetivos empresariais”, avalia. 

Daniel Garcia, coordenador de excelência e inteligência do Portocel, em Aracruz, no Espírito Santo, conta que o terminal portuário completou 45 anos de existência, como o que mais movimenta celulose no mundo, com recorde de produtividade em sua operação. Apesar de todo o sucesso que a operação alcançou nas últimas décadas, os próximos 45 anos vão depender de como a empresa vai lidar com o desenvolvimento de pessoas, inovação, tecnologia e no fomento de uma transformação cultural.  

“Portocel tem um apetite enorme em trazer valor para os acionistas, fazer receitas, operar de maneira segura, a gente tem um cuidado muito grande em gerar um impacto positivo para a comunidade onde estamos situados e nós temos inovação e tecnologia como um dos nossos pilares”, destaca Garcia.  

Para ele, os princípios da pauta ESG, que propõe uma atuação sustentável das empresas ambientalmente, socialmente e em sua governança, deve marcar cada vez mais o posicionamento das atividades marítimas e portuárias no país. “Os portos precisam interagir cada vez mais com a sociedade, temos a oportunidade de fazer mais pela sociedade”, acredita.  

Tendências de inovação 

1 – Descarbonização – Parte das iniciativas inovadoras estão voltadas para a busca de fontes alternativas de energia e na otimização no uso de combustíveis, para a redução do impacto ambiental das operações navais;  

2 – Compartilhamento de dados – A lógica tradicional de reter informação vem, cada vez mais, cedendo espaço para o espírito de compartilhamento que ganha força com o ambiente digital e no universo das startups;  

3 – Novos players – As atividades marítima e portuária estão abrindo espaço para profissionais mais jovens e profissões mais recentes, que passam a compartilhar espaços de comando com executivos mais experientes;  

4 – Automação – Os processos de automação e operação remota, que já são realidade em diversas atividades produtivas, são uma tendência nos mares e portos do mundo nos próximos anos, o que deve trazer mais segurança e agilidade em processos.  

Precisa de uma solução logística segura e customizada? Solicite um contato.

Fonte: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/inovacao-provoca-mudancas-profundas-nos-portos-brasileiros/

Créditos: Donaldson Gomes